Assim,
a dúvida era: fazer um filme para crianças ou fazer um filme para os fãs adultos
da trilogia? Acredito que esse dilema percorreu a mente dos responsáveis pela
produção de O Hobbit, de forma que
chegou a transparecer no filme com um meio termo entre essas duas opções, o que
interferiu na coerência geral do filme. Não me refiro à narrativa. Ela não é
incoerente. Mas há elementos bem visíveis, como a caracterização dos personagens
anões, que denunciam claramente isso. Quem assistiu ao filme percebeu que,
apesar de todos os treze anões serem da mesma raça e terem vindo do mesmo reino
(Erebor), alguns parecem, na verdade, ter saído do longa-metragem Branca de Neves, da Disney, enquanto
outros, como o líder anão Thorin, parecem manter o aspecto semelhante ao de
Gimli, o anão da trilogia, o qual possui uma aparência mais, digamos, realista.
Ou seja, os personagens principais refletem, em seus aspectos imprecisos e
incoerentes entre si, a dúvida em relação a isso; ou mesmo uma tentativa de
agradar todo mundo.
Por
todo o filme é possível ver a irresolução desse dilema em relação à idade do
público-alvo. No final, o resultado é que temos um filme estranho. Ninguém
espera que no mesmo filme onde há anões bonachões, atrapalhados e de semblantes engraçados
(narizes gigantescos, barrigas imensas e barbas exageradas e de formatos
estranhos), como que saídos da Disney, terá uma cena como a do terrível orc
Azog erguendo, em bravata, a cabeça decepada de Thror, o último rei de Erebor,
seguida pelo braço de Azog sendo arrancado pela espada vingativa de Thorin. Esses elementos deveriam estar em filmes
diferentes, mas não estão. Imaginem a cabeça do simpático anão Atchim, de Branca
de Neves, sendo decepada por uma lâmina orc. Realmente, há um problema aqui.
Lembrei
do personagem Jar Jar Binks, de Guerra nas Estrelas. Seu aspecto idiota, hilário
e desengonçado é um salvo conduto para ele fazer qualquer coisa absurda e
estúpida. Sabemos que ele não morrerá. É um personagem saído de "desenho animado" (feito em CGI) embutido num filme com pretensões sérias. É o personagem bobo da
corte, que está ali para fazer rir aqueles que não entendem o resto do filme,
sendo, assim, o elemento democrático. O espectador mais inculto ainda pode aproveitar o
filme, rindo bobocamente de trapalhadas sem graça de personagens tipo Jar Jar
Binks. Podemos esganá-lo, esmagá-lo, eletrocutá-lo que, no fim, tudo isso servirá
apenas para rirmos dele, assim como rimos das tragédias violentas sofridas pelo
coiote da Warner Brothers. Alguns personagens do filme O Hobbit são desse tipo. Basta observar seu aspecto infantilizado e boboca para sabermos que eles não podem morrer e que os perigos que eles passam são
vazios e servem apenas para nos divertir. Quando, por exemplo, aquele anão redondo cair de uma altura de cinquenta metros isso apenas o fará sair quicando pelo chão, como se fosse
uma bola de basquete.
Mas
ainda talvez seja possível classificar as cenas de ação do filme entre dois
tipos. Aquelas mais sérias e violentas, como a invasão de Smaug em Erebor ou as lutas entre os exércitos anão e orc, onde o risco de morte é evidente; e
aquelas direcionada para crianças, com humor mais infantil, onde já se sabe que
o perigo está ali apenas para ser evitado de forma inusitada e cômica, como na fuga aloprada do reino dos goblins, a pior parte do filme,
que ocorre ao mesmo tempo em que Bilbo encontra o Um Anel e trava um perigoso e arriscado jogo de enigmas com a
sinistra criatura Gollum. Bom, na verdade, não é tão perigoso e tão arriscado
assim, no filme. E Gollum não tem nada de sinistro. De fato, chega a ser engraçado, ou ao menos foi o que tentaram
fazer parecer.
Assim, essa cena crucial, que se
reflete em algumas cenas da épica trilogia, foi transformada numa mera brincadeira onde o ponto
central são as caretas e trejeitos engraçados de um Gollum desengonçado. É como
se Gandalf, numa cena de A Sociedade do
Anel, estivesse exagerando quando, num sussurro solitário, recorda do fato:
“Charadas... Charadas na escuridão... (Riddles...
Riddles in the dark...)”. A entonação do ator Ian McKellen é longe de ser acidental.
A intenção era transparecer o aspecto tenso da situação. Gollum, no livro, não
é descrito como um ser engraçado, mas sombrio e estranho. Em O Senhor dos Anéis, é clara sua dupla
personalidade e seu tormento provocado pelo anel, aspectos brilhantemente
retratados na canção de Emiliana Torrini (Gollum´s Song), produzida para o filme. No livro O Hobbit, Gollum é descrito como uma
criatura que sobrevive num lago nas profundezas das montanhas e cujos olhos
emitem uma luz pálida e doentia nas trevas. Fora isso, sua aparência humanóide é vaga,
deixando o leitor diante de uma coisa desconhecida contra a qual Bilbo tem que
sobreviver. Ele está prestes a ser devorado. No filme, essa cena foi,
definitivamente, feita para crianças ou espectadores mais espirituosos rirem do desengonçado e irritadiço Gollum “Jar
Jar Binks”, algo bem diferente das intenções de Tolkien.
Resumindo, mesmo com a estratégia estranha de se produzir uma nova trilogia de forma forçada (com base num pequeno livro), o diretor deveria ter pelo menos escolhido entre um dos dois públicos-alvo. Na minha
opinião, existem filmes de crianças que são bem melhores do que O Hobbit e,
dessa forma, ele teria encontrado mais felicidade caso produzisse um filme
totalmente direcionado para os fãs adultos da trilogia. Se assim o fizesse, ele atenderia às expectativas de todos e encontraria a coerência com sua própria produção de O Senhor dos Anéis. Tomara
que esses problemas sejam corrigidos nas duas continuações que estão por vim.