Neste artigo vou falar de como as novas versões de RPG, incluindo a 4ª edição, limitam a imaginação dos jogadores e do mestre. Minha análise aqui vai por argumentos sociológicos, baseando-se também em minha experiência pessoal de jogador e mestre de jogo de D&D por mais de dez anos. Eu parto da idéia de que enquanto os jogos modernos são repletos de regras que tentam cobrir todas as situações possíveis na hora do jogo - exigindo mais tempo de aprendizado das regras e possivelmente travando o jogo, obrigando-os a fazer consultas monótonas na hora da partida - ao mesmo tempo eles ampliam o leque de opções na mente dos jogadores, “instigando” sua imaginação. Já os jogos antigos possuem menos regras e seriam muito mais rápidos e práticos do que os modernos, porém, por não apresentarem regras para cobrir todas as situações imagináveis durante um combate, por exemplo, limitariam a imaginação dos jogadores. Essas afirmações são verdadeiras, em parte.
Alguns grandes sociólogos modernos – como Bourdieu, por exemplo – acreditam que as opções possíveis de ação dos indivíduos são determinadas pelo meio social, ao ponto de existir inclusive uma reprodução – de geração a geração – de indivíduos com opções limitadas que os prende, por exemplo, à classe baixa, à empregos de baixa qualificação; ou, ao contrário, à classe alta, à empregos de nível elevado e altos salários. De forma geral, podemos afirmar que o filho do pobre não vê a opção de tornar-se um médico ou um professor universitário, simplesmente porque ele “imita” seus pais, o que deixa outras opções possíveis simplesmente invisíveis. Logo, a “culpa” de os pobres continuarem a serem pobres seria mais deles mesmos do que do “sistema capitalista”. Jessé Souza trata disso de forma excelente no livro “A ralé brasileira”. Bourdieu, quando fala do sistema de ensino, toca na mesma tecla, afirmando que o Estado determina a forma como as pessoas pensam por meio da Escola e de outras instituições estatais (Ver “Razões práticas”). O Estado legitima formas de pensar por meio de sua estrutura e forma de funcionamento. No RPG podemos usar o mesmo princípio. As regras de qualquer jogo determinam as formas de pensar durante a partida. É assim no futebol e também no xadrez. Cada um possui lógicas que determinam estratégias, ações e o comportamento de seus participantes.
Um jogo que não legitima, em suas regras, algumas ações possíveis, deixa essas mesmas ações invisíveis para aqueles que se orientam apenas pelas regras do jogo. Existem jogadores que – de fato – são bem criativos e atuam de forma livre no RPG, o que deixa o jogo bem mais divertido. Na minha opinião, essa é a maior e a principal característica do RPG. Algo que foge disso começa a descaracterizá-lo como tal. Em suma, no início (old school), o RPG era algo mais apropriado para pessoas naturalmente criativas. A diversão era condicionada ao nível de criatividade dos jogadores e aqueles pouco criativos geralmente viam poucos atrativos no RPG.
As novas versões de RPG (pós-D&D 3.0) tentam resolver esse problema. Agora você não precisa ser criativo: o jogo é por você. No entanto, as opções postas também limitam as ações dos jogadores àquelas abarcadas pelo sistema. Os jogadores pouco criativos continuam limitados, mas pelo menos suas opções de ação aumentaram e o RPG ficou mais divertido para eles. Portanto, o RPG tornou-se mais democrático. Quem tem pouca imaginação ou não gosta de imaginar pode jogar e divertir-se agora. O problema é que, ao colocar um número maior de opções de ação para os personagens, elas ainda são num número inevitavelmente limitado e, conseqüentemente, limitador. E isso pode levar àqueles jogadores e mestres criativos a ficarem a aprisionados naquelas opções abarcadas pelas regras, devido àquela lógica sociológica da qual chamei atenção. E isso é lamentável. O RPG clássico tinha pouquíssimas opções, exigindo dos jogadores e Mestres uma boa dose de criatividade para que o jogo fosse realmente divertido. Em suma é isso: antes o RPG era para poucos. Hoje é para muitos, mas a um custo: limitação na criatividade, nivelamento e padronização das formas de jogar, das formas de pensar e agir, no melhor sentido sociológico.
Por exemplo, o mesmo grupo que jogou comigo há treze anos, e eram muito criativos, estava, lamentavelmente, consultando demoradamente suas fichas de personagens antes de cada ação num combate, procurando e analisando as várias opções de poderes que dispunham, na 4ª edição do D&D. É outra forma de jogar: mais lenta, mais travada. Tendenciosamente mais limitada, mas divertida do seu jeito. Na minha opinião é mais um jogo de estratégia do que um RPG. Na verdade, parece mais um RPG de videogame do que um RPG de verdade.
Ao contrário dos RPGs de videogame, o bom do RPG de verdade é a liberdade de ação. No RPG de verdade qualquer um pode tentar fazer coisas que não são permitidas num jogo de videogame. E por mais que as regras dos RPGs modernos não impeçam os jogadores de fazerem qualquer coisa que lhes venha à cabeça, as próprias regras, sua estrutura e forma de funcionamento limitam o pensamento dos jogadores, como eu mesmo vi na minha mesa de jogo.
Foi a percepção dessa realidade limitadora nos RPGs modernos que fez com que surgisse um retorno ao estilo Old School, que defende justamente a forma livre de jogar, algo que depende mais dos jogadores em si do que do sistema de regras.
Um site sobre Role Playing Games, Cinema e Boardgames, com foco no jogo Dungeons & Dragons.
sábado, 20 de novembro de 2010
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Comments by IntenseDebate
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Old school, sociologia da ação e limitações
2010-11-20T16:30:00-08:00
Nestor Burlamaqui
Dicas de Mestre|
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Observador · 735 weeks ago
Nestor percebo as suas insatisfações com o D&D 4ª Ed. .
D&D 4ª Ed. é um dos meus sistemas favoritos, vem de encontro com o que curto em muitas mecânicas e conceitos. Gosto do equilibrio do jogo, porém a questão é que jogos com desequilibrios toleráveis estão no meu foco também, pois os curto. D&D 3ª ed possuía desequilibrios intoleravéis.
D&D 4ª ed. tem algumas bizarrices, como a idéia dos pulsos de cura, do cara ir durmir e acordar "zerado", etc.., porém dá pra engolir esses defeitos para usufruir das outras qualidades do sistema.
Eu jogo/mestro diversos sistemas, RPG Indies nacionais e Importados. Meu sistema favorito é Savage Worlds (Leve/Simples/Rápido/Desequilibrio tolerável/Genérico).
Nestor seria interessante você jogar sistemas de RPG´s que vão de encontro com seus anseios, e D&D 4ª edição não é pra você.
Aqui no Brasil tem um RPG chamado Mighty Blade (a qual comprei o manual básico), um sistema old school simples e excelente para ensinar novatos, porém divertidissimo na mão de mestre/jogadores veteranos também.
Eu jogo Migthy Blade, muito bom ele. O PDF dele é de graça, dê uma olhada. Com ele você terá liberdade de ação e poucas regras.
Eu também tenho o RPG Old Dragon, que é bom também (melhor que AD&D+D&D 3ª edição, na minha opinião). Ele tem mais carne pra morder que o Mighty Blade.
Mas pra uma diversão Old School mais limpa e suave, prefiro o Mighty Blade ao Old Dragon, pois Migthy Blade é mais enxuto.
NestorMedeiros 49p · 735 weeks ago
Em relação à minha insatisfação da 4ª edição, lembre-se de que reconheço suas qualidades (como está no post). E acredito que o Mestre precise lembrar que está jogando RPG e que ele é quem manda, algo que não é bem lembrado na 4ª edição. Ele deve ter autoridade para manter a diversão, e os jogadores precisam reconhecer isso.
Mas, apesar dos apesares, ela agrada meus amigos bem mais do que esses jogos de estilo mais antigo, com mais liberdade de ação e etc. Eles já tiveram seu tempo na nossa mesa e foram muito bons. O ideal é usar a 4ª edição de uma forma mais livre da regras, como é um RPG de verdade. As regras só servem para ajudar.
Portanto, o que sugiro, que também é a mensagem desse blog, é que os Mestres libertem-se das amarras que as regras parecem impor. Digo que é apenas uma aparência pois num RPG de verdade, quem manda é o Mestre e não as regras. O problema é quando existem jogadores que não conseguem digerir isso muito bem. Isso pode gerar conflitos e momentos chatos na sessão. No fim, é tudo uma questão de comunicação e entendimento. Se a 4ª edição tenta amarrar os jogadores e Mestres, não acredito que seja de maldade. As regras estão lá para ajudar, mas quem decide se precisa dessa ajuda é o Mestre. Abraço.
Observador · 735 weeks ago
Eu jogo RPG desde 2001 (Hero Quest não conta como RPG nos anos 90 para mim), o grupo o qual tou mestrando são de jogadores e mestres que conheço desde 2001. Jogamos D&D 3ª ed por 9 anos e temos 3 campanhas em aberto a qual retornaremos, iremos finaliza-lás e não a converteremos a outros sistemas.
Paralelamente a campanha de 3ª ed o pessoal decidiu jogar a 4ª edição, eu já tinha comprado os livros que tinham saido em português e eu fiquei entusiasmado pelo sistema quando comecei a entender a mecânica. Então fui escalado para mestrar e já são 11 meses , os PJ´s estão no level 10.
Dentre os jogadores eu tenho o mestre e jogador mais antigo de RPG que conheço pessoalmente, ele joga desde os começo dos anos 90 e encarou Tagmar/Desafio dos Bandeirantes/Mundos das Trevas/Sistema Daemon/3D&T/AD&D/D&D3ª ed/Toon/GURPS, dentre outros sistemas, o cara possue um super coleção de livros de RPG.
Então formos jogar a 4ª edição, e esse mestre adorou o sistema e está muito empolgado, mesmo sendo da velha escola, ele disse que prefere essa versão de D&D do que as antigas.
O grupo no geral eram fanáticos por D&D 3ª ed, perguntei pro pessoal depois desses meses de teste de 4ª edição para eles ( eu já conhecia e já tinha jogado várias sessões de 4ª ed quando era só em inglês) que não conheciam o sistema, o grupo achou bem melhor que a 3ª edição.
O Grupo possue compromissos com campanhas inacabadas da 3ª edição, assim que esses compromissos forem finalizados eles não querem mais campanhas em 3ª edição. Fiquei surpreso por eles terem se indentificado tanto com a 4ª edição.
Sobre minha experiência como mestre e relação com os jogadores e o sistema, a coisa tá rolando num nível exponencialmente superior a 3ª edição. Acho tudo mais simples , desde fazer aventuras, formar encontros, narrar, e arbitrar, a 4ª ed não tirou em nada a minha autoridade como mestre, ela até aumentou. Mas cada grupo é diferente, aqui comigo está umas mil maravilhas.
NestorMedeiros 49p · 735 weeks ago
O D&D 4 é muito bom em vários aspectos, como você mesmo apontou, sendo superior em alguns pontos em relação à 3ª edição. Mas muita coisa mudou em relação à autoridade do Mestre desde quando eu mestrava o D&D Clássico em 1994. O AD&D veio em seguida e eu continuei mestrando e percebendo que o papel do Mestre era tão valorizado que parecia algo cercado por um ar de mistério... Hoje, é claro que eu continuo tentando jogar com essa mesma autoridade. E no meu grupo metade dos jogadores também jogavam comigo naquela época, o que ajuda a manter um certo ar de mistério e autoridade, mas não é mais a mesma coisa. A despeito disso, o livro da 4ª ed. do Guia do Mestre adota uma abordagem muito diferente em relação ao poder e autoridade do Mestre sobre as regras e sobre o jogo como um todo. E isso é inquestionável. Em nenhum momento isso é enfatizado. Por exemplo, no D&D clássico está escrito claramente que o Mestre DEVE desviar-se das regras para garantir uma melhor diversão. E o AD&D alerta:"não confie nas regras", pelo mesmo motivo. Já na 4ª edição uma simples regra da casa é algo arriscado, como está descrito na pág.189 do GdM, pois você deve ponderar cuidadosamente sobre isso e ainda corre o risco de perder os jogadores! Ou seja, o jogo claramente desencoraja mudanças ou adições em suas regras. E assim o Mestre tende a ser um mero juíz de regras do jogo.
Enquanto alguns grupos usam um estilo antigo na 4ª edição, outros que adotam o que está escrito no Guia do Mestre, certamente não enxergam o Mestre como alguém que está acima das regras. O seu grupo consegue enxergar isso e o meu também, mas é mais devido à nossa experiência no mundo do RPG do que por causa das orientações contidas na 4ª edição.